domingo, 29 de novembro de 2009

Regina Zilberman apresenta "Um Alfabeto à Parte"

Convidei Regina Zilberman (2009) para escrever uma apresentação em meu livro. Ela me presenteou com uma aula de literatura, professora e pesquisadora que sempre foi. Generosa, dedicou seu tempo a recompor, no texto, parte considerável da história da literatura para crianças no Brasil.

Que privilégio!

Leia aqui o escrito.

É imperdível!


 

Pedro Wayne: Pessoa de Letras

 À memória de Ernesto Wayne

Regina Zilberman 

No contexto da literatura sul-rio-grandense, Pedro Wayne (1904-1951) ocupa um lugar especial. Foi adepto de primeira hora do projeto modernista, gestado na São Paulo dos anos 1920 do século passado, e difundido pelas distintas regiões brasileiras ao longo daquela década e das seguintes. Foi também um motivador cultural junto à sua geração e a de então jovens artistas, como os pintores bageenses Danúbio Gonçalves (1925), Glênio Bianchetti (1928) e Glauco Rodrigues (1929), expoentes que, mais adiante, ao lado de Carlos Scliar (1920-2001), de Santa Maria, e de Vasco Prado (1914-1998), de Uruguaiana, formaram o famoso Clube da Gravura de Porto Alegre que, por volta de 1950, alavancou as artes plásticas no Rio Grande do Sul.

Foi igual e plenamente poeta e ficcionista. Seu primeiro livro, Versos meninósos e a lua, de 1931, comprova, em versos em que predomina a coloquialidade e o humor, que sua adesão ao Modernismo enraizou-se em sua linguagem lírica. Assim, não apenas compartilhou o projeto experimentalista adotado por sua geração, como o transportou para sua linguagem literária, colaborando para a renovação da poesia sul-rio-grandense, a seu tempo ainda marcada pelos resíduos simbolistas herdados de Alceu Wamosy (1895-1923) e Eduardo Guimarães (1892-1928). Tal como Alvaro Moreyra (1888-1964), buscou motivos no cotidiano, que abordou de modo espirituoso e, em algumas circunstâncias, até cômicos; e, como Felipe D’Oliveira (1890-1933), não abriu mão da ideia de liberar a linguagem poética de suas amarras gramaticais e sintáticas, renovando a expressão por meio da ousadia métrica e rítmica. Por outro lado, ao contrário dos dois últimos poetas mencionados, Pedro Wayne não deixou o Rio Grande, nem marchou na direção da capital, como era habitual entre jovens intelectual e artisticamente promissores. Ele deixou a Pelotas onde se educou e começou a trabalhar, e radicou-se em Bagé, decisão que trouxe excelentes dividendos à cidade que o acolheu.

Foi provavelmente a opção pelo Rio Grande do Sul, e sobretudo pelo Rio Grande “profundo”, estudando e trabalhando em cidades de evidente tradição cultural, mas comprometidas com a economia rural, que o levou a redigir Xarqueada, um dos mais importantes romances brasileiros da década de 1930, do século XX.

Os anos 1930 foram particularmente férteis para a literatura do Rio Grande do Sul. Na esteira da revolução liderada por Getúlio Vargas (1882-1954), que o levou ao poder e garantiu sua permanência na condição de presidente da república por quinze anos, entre 1930 e1945, a elite do Estado dispôs de canais na vida pública que repercutiram favoravelmente na economia local. Protegidos pelo governo, pecuaristas obtiveram a liquidez que facultou investimentos não mais no campo, mas nas cidades; essas puderam crescer, fortalecendo, por via de consequência, uma classe média associada ao funcionalismo público e às profissões liberais. A industrialização chegou mais tarde, por efeito da ascensão dos grupos de imigrantes desembarcados no Sul nas últimas décadas do oitocentos e nas primeiras do novecentos. Mas também esses novos grupos econômicos cooperaram para o encorpamento das camadas urbanas, com efeitos no comércio e na circulação de bens de consumo.

Ao longo dos anos 1930 e 1940, ainda que sob o tacão da ditadura e sob o medo da expansão do nazifascismo na Europa, com seus efeitos na região sul, onde os descendentes dos imigrantes alemães e italianos não escondiam sua admiração por, respectivamente, Adolf Hitler (1889-1945) e Benito Mussolini (1883-1945), o Rio Grande pôde desenvolver-se econômica e culturalmente. Por tabela, cresceu igualmente a população escolar e aumentou o público leitor. Evidencia-se uma demanda por literatura, que se materializa na oferta de livros estrangeiros, nacionais e locais produzidos por editoras situadas fora e dentro do Estado, como, neste caso, a mais importante delas, a Globo.

Quando Pedro Wayne publica Xarqueada, Érico Veríssimo (1905-1977) já tinha escrito romances como Clarissa, Música ao longe e Um lugar ao sol, Cyro Martins (1908-1995), publicado os contos de Campo Fora, e Dyonélio Machado (1895-1985), lançado Os ratos, sua novela mais prestigiada. A ficção voltada para assuntos ligados à vida rural, contudo, não se libertara ainda da perspectiva de exaltação ao homem do campo, em especial, o peão ou o vaqueano, compreendido como o gaúcho guerreiro, que vivera seu momento de apogeu à época da revolta liderada por Bento Gonçalves (1788-1847). A epopeia farroupilha, celebrada desde as novelas e poemas de Apolinário Porto Alegre (1844-1904) e de seus contemporâneos, pertencentes à Sociedade Partenon Literário (1868-1885), ainda fertilizava as imaginações, de que são exemplos as obras publicadas por ocasião do centenário do movimento, em 1935. Ainda que João Simões Lopes Neto (1865-1916) e Alcides Maya (1877-1944) tivessem diagnosticado a superação e a decadência desse mundo rural primitivo, a ficção dos anos 30 não traduzia a nova situação, a não ser quando se dirigia à temática urbana, como faziam Verissimo e Dyonélio, mas ainda não Cyro Martins, cujo primeiro romance relativo a esse tema, Sem rumo, data de 1937.

É essa circunstância que assinala a importância de Xarqueada, de Pedro Wayne. Provavelmente impressionado pela ficção militante da ficção de Jorge Amado (1912-2001), que, até então, já tinha lançado os romances Cacau (1933), Suor (1934), Jubiabá (1935), Mar Morto (1936) e Capitães da Areia (1936), Pedro Wayne reconstitui, no interior do Rio Grande do Sul, o funcionamento daquele que, até sua época, constituiu o principal motor da economia da metade sul do Estado – os saladeiros – para mostrar e denunciar a exploração do assalariado rural, a violência do sistema e as alternativas de mudança. Wayne não se limita a constatar as razões da decadência de um certo sistema econômico, exilando o campeiro, como em Sem rumo, de Cyro Martins, e o modo autocrático e centralizador do exercício do poder, como em Música ao longe e Um lugar ao sol, de Érico Veríssimo. Ele busca pensar a questão desde uma perspectiva política progressista, o que ainda não se instalara plenamente no imaginário da literatura do Rio Grande do Sul e que aparecerá mais tarde, em romances de Dyonélio Machado (Desolação, de 1944; Passos Perdidos, de 1946), e de Cyro Martins (Estrada Nova, de 1954).

Tais circunstâncias afiançam a Pedro Wayne posição inquestionável na literatura do Rio Grande do Sul e na trajetória do romance brasileiro. Contudo, como se pode verificar na pesquisa de Cristina Maria Rosa, reunida em “Um alfabeto à parte: biobibliografia de Pedro Rubens de Freitas Weyne – O Pedro Wayne”, o escritor radicado em Bagé foi muito mais longe. Sua produção estendeu-se para além do romance de 1937, como testemunham obras suas lançadas pós morte, bem como os estudos de autoria de seu filho mais velho, Ernesto Wayne (1929-1997), poeta, professor e crítico literário, entre os quais se contam sua dissertação de mestrado e o estudo dedicado ao pai, publicado em 1989 pelo Instituto Estadual do Livro, do Estado do Rio Grande do Sul.

A pesquisa de Cristina Maria Rosa apresenta qualidade ímpar: com o intuito de, primeiramente, recuperar a trajetória intelectual de Pedro Wayne, investiga sua história, bem como a trajetória de seus ascendentes, caracterizando o perfil de uma família profundamente comprometida com o mundo das Letras e da Literatura. A fim de descrever e compreender o ser humano Pedro, examina o percurso de sua existência desde os bancos escolares até a transferência para Bagé, acompanhando, a partir daí, suas primeiras ações como criador e animador cultural. Por sua vez, o panorama se amplia, ao incluir elementos da vida social dos locais por onde passou o biografado, estendendo-se, ao incluir o itinerário de seus descendentes.

A pesquisa, realizada de modo minucioso e organizada de modo didático, não recua perante obstáculos, remetendo às fontes primárias, sejam os guardados do próprio escritor, os depoimentos dos que o conheceram, os documentos mantidos em arquivos pessoais e, sobretudo, institucionais. Há alguns momentos em que a pesquisadora abre mão do posicionamento objetivo e distanciado requerido pelo procedimento científico, para dar oportunidade a que os sujeitos diretamente envolvidos com o escritor tenham ocasião de abrir suas memórias e expor sua saudade.

Não poderia ser diferente: a pesquisadora teve a rara oportunidade de conversar com a viúva de Pedro Wayne, então completando seu centenário e senhora da lucidez necessária para contaminar a obra de Cristina Maria Rosa com a vitalidade e a sensibilidade que moveu seus atos. Se o ponto alto da coleta de dados coincide com o testemunho de Leopoldina de Almeida Calo Wayne, viúva de Pedro Wayne, o momento culminante da pesquisa é o achado das Histórias da Teté, manuscrito produzido pelo autor com o fito de estimular em sua filha Ester o desejo de alfabetizar-se e, ao mesmo tempo, de cultivar a fantasia e o gosto pela literatura.

Histórias da Teté, redigido segundo Cristina Maria Rosa entre os últimos anos da década de 1930 e início da década de 1940, é uma narrativa original, que mescla elementos das cartilhas com características da literatura infantil, tais como enredo e personagens. Para se avaliar a importância de tal achado, cabe verificar os paradigmas históricos com os quais aquela obra se relacionaria.

Data de 1936 a obra Meu ABC, que Érico Veríssimo publicou pela Livraria do Globo, sob o pseudônimo de Nanquinote, figura inventada e desenhada pelo romancista para acolher, na Biblioteca do Nanquinote, obras destinadas ao público infantil abrigadas por aquela editora. Em Meu ABC, cada letra do alfabeto da língua portuguesa ocupa uma página de texto, que apresenta uma curta narrativa composta por vocábulos, na maioria, iniciados pelo grafema em questão. Para a letra A, dizem as frases iniciais do texto:

“O avião voa. O avião é vermelho. O céu é azul. O menino de calças azuis aponta para o avião e diz: “Eu queria ter um brinquedo como aquele”.[1]

 

É também da Livraria do Globo A festa das letras, cartilha assinada por Cecília Meireles (1901-1964) e Josué de Castro (1908-1973) que procura mesclar, à aprendizagem dos grafemas da língua portuguesa, a transmissão de “preceitos de higiene alimentar, indispensáveis à sua [do leitor] vida”, conforme declaram os autores.[2] Também Mario Quintana (1906-1994) produziu uma cartilha, O batalhão das letras, de 1946. Tanto A festa das letras, quanto O batalhão das letras apresentam versos rimados para introduzir os grafemas por meio das palavras iniciadas por elas, como se verifica nas estrofes a seguir, extraídas da obra de Cecília Meireles e Josué de Castro:

E os raminhos de Aipo que estão deste lado?

E estas folhinhas verdes de Agrião!

Quem é que ainda não sabia quem eu fosse!

– Sou o A do Arroz-doce!

 

Nesses três exemplos, criados por renomados escritores brasileiros, a exposição é bastante convencional, já que os grafemas são apresentados de maneira separada, visando apenas seu reconhecimento pelo leitor, que os identifica individualmente, como nesse quarteto de Mario Quintana,

 

Aí vem o Batalhão das Letras

E, na frente a comandá-lo,

O A, de pernas abertas,

Montado no seu cavalo.[3]

 

Ou então eles aparecem na abertura de vocábulos, mostrados sob formatos diferentes (maiúsculos ou minúsculos, por exemplo), como se constata nos demais autores citados.

É tão-somente com a publicação, a partir dos anos 1990, da Coleção ABZ, criada por Ziraldo (1932) e reunida depois em um único volume, em O ABZ do Ziraldo, que se propõe um outro paradigma para cartilhas que não têm como propósito figurar na escola como livro didático. Ziraldo elabora um enredo para cada um dos grafemas, tornando-os protagonistas de uma ação com início, meio e fim. Assim, há uma conexão narrativa que motiva o interesse do leitor para além da aprendizagem da forma e do significado de uma letra. Pode-se dizer que, ao invés de alfabetizar pela introdução à ordem dos grafemas da língua portuguesa, Ziraldo motiva o letramento, pois o leitor é introduzido ao universo da escrita por meio de suas representações mais conhecidas, ao mesmo tempo em que se diverte com o acompanhamento de uma história.

Quem ler as Histórias da Teté, resgatadas por Cristina Maria Rosa, em sua obra “Um alfabeto à parte: Biobibliografia de Pedro Rubens de Freitas Weyne – O “Pedro Wayne”, constatará que o autor radicado em Bagé foi capaz de oferecer à sua filha um produto similar a uma época em que questões sobre alfabetização e letramento não eram discutidas, e nem mesmo a literatura infantil, no Rio Grande do Sul, oferecia exemplos de criatividade e renovação. Mesmo no plano nacional, nossa produção para crianças restringia-se a poucos nomes e, se entre eles refulgia o de Monteiro Lobato, não significa que esse grande artista contasse com a companhia numerosa de outros escritores.

Pedro Wayne pôde, assim, ainda que no âmbito privado e sem pretensões de torná-lo público, dar vazão a um texto inteiramente revolucionário que, passados quase setenta anos de sua elaboração, mostra-se ainda novo e inovador, como se tivesse vindo à luz há muito pouco tempo. Como foi capaz de elaborá-lo? Provavelmente porque era (e o mesmo pode-se dizer de sua família, tenham sido os ascendentes ou os descendentes) um homem letrado, amante do livro e da leitura. Sua sensibilidade de poeta, agudizada pelo universo em que vivia, bastou para motivar, de maneira até certo ponto espontânea, o aparecimento de tal obra.

Obra que, agora, temos o privilégio de conhecer e apreciar. Devemos ser muito gratos a Cristina Maria Rosa, que nos propiciou o acesso a esse valioso material, ainda mais valorizado por ter sido objeto de tratamento qualificado por parte de uma pesquisadora, ela também, pessoa sensível e amante das letras.

Regina Zilberman - UFRGS; FAPA

 



[1] NANQUINOTE [VERÍSSIMO, Érico]. Meu ABC. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1936. Curiosamente, essa abertura do livro guarda alguma semelhança com o capítulo inicial de Clarissa, de mesmo autor, publicado em 1933.

[2] MEIRELES, Cecília; CASTRO, Josué. A festa das letras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. A edição original data de 1937.

[3] QUINTANA, Mario. O batalhão das letras. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1946.

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Um "Alfabeto à parte" foi criado em setembro de 2008 e tem como objetivo discutir a leitura e a literatura na escola. Nele disponibilizo o que penso, estudos sobre documentos raros e meus contos, além de uma lista do que gosto de ler. Alguns momentos importantes estão aqui. 2013 – Publicação dos estudos sobre o Abecedário Ilustrado Meu ABC, de Erico Verissimo, publicado pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo em 1936; 2015 – Inauguração da Sala de Leitura Erico Verissimo, na FaE/UFPel; 2016 – Restauro e ambientação da Biblioteca na Escola Fernando Treptow, inaugurada em 25 de novembro; 2017 – Escrita da Biografia literária de João Bez Batti, a partir de relatos pessoais. Bilíngue – português e italiano – tornou-se um E-Book; 2018 – Feira do Livro com Anna Claudia Ramos (http://annaclaudiaramos.com.br/). 2019 – Produção de Íris e a Beterraba, um livro digital ilustrado por crianças; 2020 – Produção de Uma quarentena de Receitas, um livro criado para comemorar a vida; 2021 – Ruas Rosas e Um abraço e um chá, duas produções com a UNAPI; 2022 – Inicio de Pesquisa de Pós-Doutorado em acervos universitários. Foco: Há livros literários para crianças que abordem o ECA? 2023 – Tragicamente obsoletos: Publicação de um catálogo com livros para a infância.

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