quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Original e Reconto: uma sequência didática


“Ma sopra tutte le invenzioni stupende, qual eminenza di mente fu quella di colui che s'immaginò di trovar modo di comunicare i suoi piú reconditi pensieri a qualsivoglia altra persona, benché distante per lunghissimo intervallo di luogo e di tempo? parlare con quelli che son nell'Indie, parlare a quelli che non sono ancora nati né saranno se non di qua a mille e dieci mila anni? e con qual facilità? con i vari accozzamenti di venti caratteruzzi sopra una carta. Sia questo il sigillo di tutte le ammirande invenzioni umane...”
(Galileo Galilei, Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo, 1632, p.62).

“Mas sobre todas as invenções estupendas, que a eminência de mente foi aquela de quem imaginou encontrar modo de comunicar seus próprios pensamentos mais recônditos a qualquer outra pessoa, mesmo que distante por enorme intervalo de tempo? Falar com aqueles que estão na Índia, falar com aqueles que ainda não nascerem e só nascerão dentro de mil ou dez mil anos? E com que facilidade? Com as várias junções de vinte pequenos caracteres num pedaço de papel. Seja esse o segredo de todas as invenções humanas..." (Italo Calvino, Por que ler os clássicos, 2007, p. 93).

O excerto acima, original e traduzido por Italo Calvino, integra o texto Dialogo, escrito por Galileo Galilei, em 1632. Disponibilizado pelo Projeto Manuzio[1], no texto Galileu refere-se ao alfabeto necessário para ler o livro da natureza, escrito, segundo ele, em linguagem matemática.
A escolha desse trecho, que se refere às letras do alfabeto e a seu poder – o segredo de todas as invenções humanas, de acordo com Galileo – para abrir esse texto sobre clássicos e recontos se deve ao necessário vínculo que mantemos com quem viveu no passado e deixou impresso sua leitura do mundo.
Galileo fez isso. E reconheceu que a invenção do alfabeto era a porta para o futuro e, claro, para o passado. É pelo conhecimento do código que eu escrevo. Mas é também por esse conhecimento que leio. Assim que, pela escrita, o tempo não existe ou existe suficientemente para que eu saiba quem, quando, onde e por que escreveu algo.
Tudo isso para apresentar Original e Reconto: uma sequência didática, um texto que surgiu após uma demanda de uma estudante de Pedagogia. “Professora”, disse ela, “preciso criar uma sequência didática e pensei na literatura. Podes me ajudar?”. Imbuída do desejo de retribuir a confiança que a aluna depositou em mim, busquei, inicialmente, responder à questão: O que é uma sequência didática? Como se planeja? É possível fazer uma sequência didática com o tema literatura infantil?
Recorrendo aos Parâmetros Curriculares Nacionais (MEC, 1997) que antecedem o Plano Nacional de Educação[2] (MEC, 2014-2024), pode-se compreender a sequência didática como um termo recorrentemente utilizado para evidenciar que as aprendizagens são contínuas (MEC/PCNs, 1997, p. 36). Assim, caberia à escola “seqüenciar os conteúdos segundo critérios que possibilitem a continuidade das aprendizagens”.
Sequência didática  então, é um termo utilizado na educação para definir um grupo de procedimentos encadeados de maneira articulada. As sequências integram Projetos Pedagógicos – de curta ou média duração – que apresentem um objetivo compartilhado e se expressam em um produto final (MEC/PCNs, 1997, p. 50). Sequência didática pode ser entendida também como uma proposição teórico-metodológica organizada em passos ou etapas conectadas entre si que objetivam tornar mais eficiente o processo de ensino e o aprendizado. Na formação do leitor, são “situações didáticas propostas com regularidade e voltadas para a formação de atitude favorável à leitura” (MEC/PCNs, 1997, p. 46).
De acordo com o MEC (PCNs, 1997) o professor tem o papel principal como mediador entre o conhecimento linguístico disponível e o aprendiz durante o processo de ensino-aprendizagem. Neste processo, deve levar em consideração também, a competência discursiva de seus alunos, representada pela escuta, leitura e produção de textos.
E o que significa mediar, ser um mediador? Mediador é o professor que, durante o processo de aprendizagem da língua, indica, evidencia, mostra aos estudantes como a opinião de cada um ali presente deve ser considerada. No processo de interlocução, a consideração real da palavra do outro é condição de aprendizagem, pois as opiniões dos demais apresentam possibilidades de análise e reflexão sobre as próprias. Daí o primeiro passo do educador: tornar a sala de aula um espaço onde cada sujeito tenha o direito à palavra reconhecido como legítimo. A intervenção/mediação do professor ao oportunizar a “convivência no espaço público da escola”, de acordo com os PCNs (p. 68), é essencial e dela depende “a aprendizagem dos alunos”.

A sequência didática quando da leitura de literatura: clássicos e recontos.
Quando se intenciona ensinar literatura, é necessário, primeiro, considerar os saberes prévios, o repertório dos estudantes. Esse deve ser o princípio didático para o professor: saber o que os seus alunos sabem[3]. Logo depois, estabelecer os objetivos que, no caso da literatura passam por: desenvolver valores e atitudes leitoras. Estas podem ser definidas como o interesse por ouvir e manifestar sentimentos, experiências, idéias e opiniões; fazer-se entender e procurar entender os outros além de respeitar ideias e modos de falar dos outros.
Quais textos ler?
Dentre os principais recursos que precisam estar disponíveis na escola para viabilizar a proposta didática da área da literatura, estão os textos autênticos, originais.
A utilização de textos autênticos, de acordo com os PCNs (MEC, 1997, p. 61) pressupõe cuidado com a manutenção de suas características gráficas como a formatação, paginação e os diferentes elementos utilizados para atribuição de sentido. É importante também, que esses textos sejam trazidos para a sala de aula nos seus portadores de origem.
A literatura nos PCNs:
Se observarmos os PCNs para a Língua Portuguesa, podemos localizar, entre os temas relevantes a serem tratados, o que diz respeito à especificidade do texto literário (MEC/PCNs, 1997, p. 29-30). Para o documento, “A literatura não é cópia do real, nem puro exercício de linguagem, tampouco mera fantasia que se asilou dos sentidos do mundo e da história dos homens” (p.29) e é “importante que o trabalho com o texto literário esteja incorporado às práticas cotidianas da sala de aula, visto tratar-se de uma forma específica de conhecimento” (MEC/PCNs, 1997, p. 29).
Tomada como uma “maneira particular de compor o conhecimento”, a literatura na escola potencializa uma “autonomia relativa ante o real” e implica dizer “que se está diante de um inusitado tipo de diálogo regido por jogos de aproximações e afastamentos, em que as invenções de linguagem, a expressão das subjetividades, o trânsito das sensações, os mecanismos ficcionais podem estar misturados a procedimentos racionalizantes, referências indiciais, citações do cotidiano do mundo dos homens” (MEC/PCNs, 1997, p. 29-30).
Assim, o ensino da literatura ou da leitura literária envolve o “exercício de reconhecimento das singularidades e das propriedades compositivas que matizam um tipo particular de escrita” e, com essa compreensão, “é possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tratá-los como expedientes para servir ao ensino das boas maneiras, dos hábitos de higiene, dos deveres do cidadão, dos tópicos gramaticais” (p. 30) entre outras.
Se o foco é a “formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias” (p. 30), o caminho é o contato profícuo com o texto, seu autor, seu contexto.

Sugestão de sequência didática com texto narrativo: o original e o reconto
A proposta é ler um conto original como, por exemplo, A princesa e a Ervilha, de Hans Christian Andersen, no primeiro dia e ler, no segundo, “Ervilina e o Princês” ou “Deu a louca em Ervilina”, de Sylvia Orthof, autora e ilustradora detentora de selos de “altamente recomendável para crianças” pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. O objetivo é reconhecer o clássico, seu impacto literário e suas características narrativas e perceber o mesmo em uma reescrita moderna (século XX) que toma o clássico como referência.

1.    Primeiro dia: Leitura da Narrativa Original
ü    Perguntar às crianças se gostam de ouvir histórias e quais conhecem;
ü    Indagar se conhecem a biblioteca da escola, se a frequentam, se conhecem alguma livraria ou sebo, se há livros em suas casas e quem os lê...
ü    Informar que há muitas versões de circulando e que vais ler a "verdadeira". 
ü    Apresentar o livro que vais ler e mencionar quando a história foi escrita, mencionar o autor sua biografia e elencar outras histórias que ele escreveu e perguntar se as conhecem;
ü    Ler, em voz alta e sem alterar o texto, a narrativa escolhida, convidando-os a ouvirem;
ü    Ao fim, perguntar o que sentiram ao ouvirem a história, qual o personagem que mais gostaram, se há algum entre eles que não gostaram e quais os motivos desse gostar/não gostar;
ü    Solicitar que imaginem e expressem o que fariam no lugar dos personagens, se os imitariam, contestariam, agiriam diferenciadamente;
ü    Convidá-los a pensar sobre narrativas reais similares: elas existem?

DICA: Como dica pedagógica para a pesquisa de repertório dos estudantes e no início da sequência que tem objetivo, o mediador deve anotar (gravar/registrar) todo o diálogo como fonte para a análise comparativa com as demais atividades.

2.    Segundo dia: Leitura do reconto em voz alta
ü Informar que a narrativa lida no dia anterior é muito conhecida no mundo todo e outros escritores resolveram inventar um jeito diferente de contá-la;
ü Perguntar se querem ouvir uma das reinventadas;
ü Informar que a autora da reescrita é uma brasileira;
üLer o título da reescrita e perguntar se há semelhanças com o título original;
ü Anotar os dois títulos no quadro, em letras grandes e ler para eles, pausadamente e em voz alta;
ü Incentivá-los a comparar os dois títulos e argumentar;
ü Apresentar o livro que vais ler e mencionar o tempo em que a história foi escrita;
ü Referir-se à autora e sua biografia;
ü Elencar/informar sobre outras histórias que ela escreveu e perguntar se as conhecem;
ü    Ler, em voz alta e sem alterar o texto, a narrativa escolhida, convidando-os a ouvirem;
ü    Perguntar o que sentiram ao ouvirem a história, qual o personagem que mais gostaram, se há algum entre todos que não apreciaram e sugerir que argumentem;
ü    Sugerir que comparem as duas histórias.

DICA: Organizar, no quadro uma tabela com as semelhanças/diferenças incluindo as características linguísticas e de contexto de cada um dos contos. Anotar o diálogo para a análise com o ocorrido no primeiro dia.


3.    Para fechar essa sequência...
Literatura é arte. Deve ser fruída. Apresentar duas escritas, tendo a original como referência, amplia o repertório das crianças e do professor e realiza o que se deseja em literatura: prazer e pensamento, ludicidade e reflexão, o doce e útil vínculo que há nos melhores textos.
Lembre sempre: a escola é um lugar privilegiado para ingressar nos sabores e saberes literários e, nela, é o professor que produz o leitor. "A leitura é uma arte que se transmite, mais do que se ensina", escreveu a Michèle Petit. E eu assina embaixo!



Referências:
ANDERSEN, Hans Christian. A princesa e a ervilha. Tradução de Maria Luiza Borges. In: Contos de fadas: de Perrault, Grimm, Andersen e outros. São Paulo: Zahar, 2010.
GALILEO, Galileu. Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo. Disponível em: http://www.liberliber.it/biblioteca/licenze/
CALVINO, Italo. O livro da Natureza em Galileo. In: Por que ler os clássicos. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
ORTHOF, Sylvia. Ervilina e o Princês. Ilustrações de Laura Castilhos. Porto Alegre: Editora Projeto, 2009 [1ª Ed. 1986].
PETIT, Michele. A arte de Ler. São Paulo: Editora 34, 2009.






[1] Iniciativa da Associação Cultural Liber Liber, que intenciona publicar e difundir gratuitamente obras literárias em formato eletrônico disponíveis em: http://www.liberliber.it/
[2] O PNE 2014-2014 é um projeto de Nação, segundo o MEC. Está sendo elaborado e intenciona determinar as diretrizes, metas e estratégias para a política educacional do país. Mais em: http://pne.mec.gov.br/
[3] Para saber mais, leia Teste de leitura e letramento, neste mesmo BLOG.

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Alfabeteando...

Um "Alfabeto à parte" foi criado em setembro de 2008 e tem como objetivo discutir a leitura e a literatura na escola. Nele disponibilizo o que penso, estudos sobre documentos raros e meus contos, além de uma lista do que gosto de ler. Alguns momentos importantes estão aqui. 2013 – Publicação dos estudos sobre o Abecedário Ilustrado Meu ABC, de Erico Verissimo, publicado pelas Oficinas Gráficas da Livraria do Globo em 1936; 2015 – Inauguração da Sala de Leitura Erico Verissimo, na FaE/UFPel; 2016 – Restauro e ambientação da Biblioteca na Escola Fernando Treptow, inaugurada em 25 de novembro; 2017 – Escrita da Biografia literária de João Bez Batti, a partir de relatos pessoais. Bilíngue – português e italiano – tornou-se um E-Book; 2018 – Feira do Livro com Anna Claudia Ramos (http://annaclaudiaramos.com.br/). 2019 – Produção de Íris e a Beterraba, um livro digital ilustrado por crianças; 2020 – Produção de Uma quarentena de Receitas, um livro criado para comemorar a vida; 2021 – Ruas Rosas e Um abraço e um chá, duas produções com a UNAPI; 2022 – Inicio de Pesquisa de Pós-Doutorado em acervos universitários. Foco: Há livros literários para crianças que abordem o ECA? 2023 – Tragicamente obsoletos: Publicação de um catálogo com livros para a infância.

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